Esperança em meio a escravidão

 


"A esperança que se levanta e nos capacita a enfrentar o pior depende da fé em algo que transcenda este mundo e esta vida, algo que não está disponível para aqueles que vivem dentro de uma visão de mundo que nega o sobrenatural.


Howard Thurman, estudioso afro-americano da Universidade de Boston da metade do século 20, fez uma palestra famosa em Harvard, em 1947, sobre o significado do gênero musical “Negro spirituals”. Ele contestou a crítica de que os spirituals afro-americanos eram excessivamente "do outro mundo", cheios demais de referências ao céu, a coroas e tronos e às vestes que os cantores usariam quando Jesus voltasse.


O argumento era de que tais crenças tornavam as pessoas dóceis e submissas.


Pelo contrário, Thurman argumentou, essa fé cantada servia para aprofundar a capacidade de resistência dos escravos. Os spirituals encerravam a crença cristã em um juízo final, um dia em que todas as injustiças seriam reparadas.
Incluíam também a crença na imortalidade das pessoas e na reunião com os entes queridos para sempre. A partir dessas doutrinas "cresceu a convicção de que esse é o tipo de Universo que não pode negar, ao fim de tudo, as necessidades de amor e de anseio. [...] A união com os entes queridos remete por fim à esperança de imortalidade e a questão da imortalidade remete a Deus. Portanto Deus consertaria todas as coisas".


Thurman negou que essa esperança cristā debilitasse o amor-próprio dos escravos ou sua capacidade de enfrentar aqueles que lhes roubaram a liberdade. Em vez disso, “ela ensinava a um povo como ter êxito na vida, a encarar com firmeza os fatos que argumentam de modo mais dramático contra toda esperança, e a usar esses fatos como matéria-prima com a qual teciam uma esperança que o ambiente em que viviam, com toda sua crueldade característica, não poderia esmagar. [...] Isso [...] os capacitava a rejeitar a aniquilação e a reafirmar um terrível direito de viver”.


Por que nada era capaz de lhes destruir a esperança? Porque ela era do outro mundo, não se baseava em circunstância alguma que estivesse dentro dos muros deste mundo. Ela faz parte do futuro de Deus.
Essa esperança os capacitava a "reafirmar o terrível direito de viver”.


Em determinado ponto de sua palestra, Thurman responde à objeção "Mas não podemos entender todo esse tipo de coisa em sentido literal. Com certeza toda essa conversa de coroas e céu é simbólica”.
Ele rebate que se tais coisas fossem vistas como meros símbolos e não como realidade, jamais poderiam ter servido para proporcionar uma vida de esperança a escravos, quando as perspectivas de melhoria eram tão pequenas.


Imagine que ridículo seria sentar-se com um grupo de escravos do início do século 19 e dizer: "Nunca haverá um dia do juízo em que as injustiças serão corrigidas. Não existe nenhum mundo e vida futuros em que seus anseios serão satisfeitos. Esta vida é tudo o que há. Quando você morre, simplesmente deixa de existir. Nossa única esperança real de um mundo melhor está no aprimoramento da política social. Agora, tendo isso em mente, vá e mantenha a cabeça erguida e viva uma vida de coragem e amor. Não se entregue ao desespero".


Um exercício mental desses revela como a esperança cristā tem mais poder para os sofredores do que um mero otimismo no progresso histórico. Thurman chama a atenção para o simples fato histórico de que a esperança na justiça eterna e na bênção divina sustentou o povo afro-americano."


Fontes: Deus na era Secular de Timothy Keller (Editora Vida Nova)
Howard Thurman, A strange freedom: the best of Howard Thurman on religious experience and public life, Walter Earl Fluker, org. (New York: Beacon, 1991).


Negro spirituals é um tipo de música religiosa geralmente de tom melancólico cantado a cappella por escravos negros especialmente da região sul dos EUA. Continua a ser cantado por corais renomados da atualidade no mundo todo.

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