Reflexões na quarentena: No fim de semana vimos que não somos livres e já não vemos a liberdade como víamos antes

Que a pandemia do corona vírus trouxe grandes impactos, isso todos já sabem, mas talvez as pessoas ainda não tenham parado para pensar sobre sua liberdade.

Muitos pensaram que entraram em verdadeiro colapso mental ficando mais de uma semana em casa, bem, há quem possa estar realmente mais estresseado e irritado com essa necessidade, mas eu gostaria de abordar de outro aspecto da necessidade de ficar em casa que é a falta de liberdade.

Afinal, somos verdadeiramente livres? Quem de nós pode dizer que é livre?

Quem sabe, constatar que a liberdade, no fim das contas, é uma ilusão pode trazer certo receio, ainda que esse exercício exige da nossa parte certa dose de tempo para refletir sobre nossa condição real.

Muito antigomente acreditava-se que uma sociedade só poderia de fato ser coerente e edificada com uma base religiosa de crenças morais onde todos tinham uma unidade de pensamento e comportamento. Mas a revolução causada por Lutero e desfragmentação da igreja Cristã, aliada, logo mais a implacável guerra entre católicos e protestantes nos séculos 16 e 17, produziram uma reação adversa a religião entre as elites europeias na época.

Alguns bons teóricos como Hugro Grotis e John Lock então, se viram na necessidade de conceber uma nova ordem política, baseada não na lei de Deus, mas nos governados, no que para o povo era consenso. A partir daquele momento cada pessoa deveria viver conforme apraz, e o governo deveria ser o garantidor, fornecendo a cada pessoa a liberdade para viver de modo que satisfaça os próprios interesses.

Hoje é bem provável que seja um consenso entre crentes e descrentes que a liberdade é o valor maior em nossa cultura, a narrativa padrão entre todos os ocidentais.

Desta forma de pensar surgem aquelas que pensam que o Cristianismo seria como o arqui-inimigo da liberdade, mas será mesmo?

O conceito de liberdade moderna é esse, pensando que você pode fazer o que quer, que é livre, sem restrição nas escolhas.

Embora pareça muito lindo e uma ideia atraente, pense se de fato a liberdade funciona assim.

Pense se você tinha um filho(a) e adorasse beija-lo, educá-lo e ensinar a ele as coisas que aprendeu, ao passo que você também curte comer de tudo, adora doces e churrasco entre tantas outras coisas. Até que em seu check-up anual seu médico diz: " olha, sugiro que o senhor faça sérias restrições alimentares, caso contrário terá um infarto".

Se a definição moderna de liberdade é a capacidade de fazer tudo o que quer, como a liberdade acontece em casos como este?

Sem dúvida esse pai não quer ficar na cama e morrer, perdendo muitos anos ao lado de seu filho(a).

Tim Keller tem uma frase que diz: "No nível da vida real existe diversas liberdades, e ninguém consegue tê-las todas".

Hoje quando alguém olha meus desenhos pode até concluir que são realmente bons, mas desconhece o quanto da minha liberdade foi cortado por mim para que eu passasse horas com caneta e papel em mãos treinando para fazer um bom trabalho.

Da mesma forma, não consegue um diploma na faculdade se não restringir as saídas e as festas com os amigos em algum momento.

Portanto, a ideia de liberdade que a cultura nos impõe, no fim, só na escraviza. Tim Keller nos fala que "a liberdade não é ausência de restrições, mas a escolha das restrições certas e das liberdades certas a se perder".

Somos seres relacionais e portando até mesmo quem estufe o peito para dizer que faz o que não poderia se quer tirar a sua vida, sem entristecer pra sempre a vida das pessoas que te amam e estão ao seu redor. Não há como escapar do fato de que em algum grau pertencemos uns aos outros.

"Homem nenhum é uma ilha" John Donne

Pode haver aqueles que dizem "eu sou livre pra fazer o que quer, não fazer mal a ninguém", mas viver desta forma na direciona para uma vida sem juízo de valor sobre qualquer coisa. Se alguém tem como moral absoluta a liberdade é bem provável que para essas pessoa a intolerância e o preconceito seja de fato os únicos pecados que devem ser castigados, pois para quem parte do princípio de que devemos viver sem fazer mal a ninguém, esta pessoa vive o "princípio do dano".

A questão então passa a ser, como alguém pode saber o que fere ou deixa de ferir uma pessoa?

Estava falando com um amigo via chamada de vídeo e ele se despedir disse que iria lá, bater uma e fumar um baseado. Ora, não sei até que ponto aquilo me foi dito apenas para chocar ou de fato ele tem ido fazer isso, mas eu acredito na segunda opção. O ponto aqui é a pornografia, alguém que se diz livre poderia consumir pornografia no privado sem que ninguém saiba? Claro que sim, uma mentalidade de liberdade que parte do "princípio do dano" vê nesse o fim em si mesmo, mas não consegue ver o quanto consumir molda a sua mentalidade a ponto de prejudicar o seu relacionamento homem/mulher e que isso afeta a sociedade em que vive.

Todos os dias fizeram juízos de valor sobre as mais diversas coisas e relativizamos tudo, sejam grupos de pessoas, pessoas ou coisas. Reputações são tolhidas e a internet se tornou uma arena pública de achincalhamento social. Portanto o que mudou desde muito antes do mundo como o conhecemos?

Estamos aqui neste mundo lutando para impor nossas crenças morais sobre o que constitui dano moral sobre as outras pessoas.

Você acha ainda que não precisa de restrições morais sejam elas que forem, para regulares nossas atos para viver em sociedade?

Se nos apaixonamos nossa liberdade é imediatamente reduzida, pois não podemos simplesmente passar uma final de semana sozinhos sem dizer o que faremos ou deixaremos de fazer, os relacionamentos são assim, exigem cuidado um do outro, compaixão, carinho e não há como ter essas coisas sem se importar o mínimo que seja com alguém.

Por isso, namoridos, amigos, parentes, cônjuge são cruciais para atingirmos nossos objetivos, sejam eles que são for em nossa vida. Se alguém que nos importamos adoece, nossa liberdade é instantaneamente perdida, pois ter que desprender tempo e energia para cuidar e tratar da pessoa amada.

Não há como viver em amor com alguém que diga "primeiro eu, depois, se der, você" desta forma a balança do amor estaria totalmente desiquilibrada para um lado, bem diferente de dizer "primeiro você e eu me adapto", o amor exige sacrifícios e quando os dois assim pensam o relacionamento é próspero e rico em vários sentidos.

Desta forma você jamais poderia dizer que é livre, pois sempre alguém vai ser restringindo as suas opções.

Em tempos de restrições que nos foram impostas, estamos tentando lidar com a melhor forma possível com as condições sociais que o CoronaVírus nos obriga. Pode ser que alguém reclame do fato de ser obrigado a estar em casa, dizendo que isso é uma forma de prisão, mas esse reclama da mesma coisa que alguém que é obrigado a sair de casa para trabalhar, quem é mais ou menos livre?

Vírus a parte, cabe a reflexão sobre essa ideia falsa de liberdade que carregamos até aqui.

A liberdade não deve ser pretexto para egoísmo, agora necessitamos estar em casa para cooperar a fim de que o vírus não se alastre, sendo também sensível a quem necessariamente precisa trabalhar fora de casa por exercer funções primordiais, sejam entregadores, mantenedores de internet, agricultores, produtores de alimentos e suprimentos, jornalistas, líderes políticos etc.

Então, quem é verdadeiramente livre? Me parece que no fim, todos somos em alguma instância, escravos de nós mesmos. A questão está em pelo que você vive, qual a razão da sua vida?

Já vimos que não somos livres, pois não há lado para andar sem que não venhamos a esbarrar em nos limites alheios a nós. Nossa busca por satisfação nos aprisiona, nos direciona para nós mesmos, e isso impacta as pessoas a nossa volta. Viver para algo limitado, efêmero e passageiro limita nossas escolhas, restringe nossa liberdade, quando olhamos profundamente em nosso coração vemos o fracasso de encontrar satisfação em coisas terrenas. Neste sentido, ficar em casa ou sair de casa mesmo que não seja uma opção, parece estar a margem daquilo que amamos verdadeiramente.

Me arriscaria a dizer que neste momento quem mais sofre dentro da prisão (seja ela qual for) é aquele que vê seu amor último sendo exposto as limitações impostas por um vírus.

Possuo a convicção de que fomos feitos para conhecer a Deus, no exemplo do amor entre um casal, a analogia pode ser parecida, pois quando nos apaixonamos queremos conhecer a razão do nosso amor.

Em tempos de incertezas, dúvidas e muita angústia, pensar sobre a razão maior do nosso amor nos liberta diante de um cenário que é muitas vezes desanimador.

Qual a razão final do seu amor? Pelo que você vive? Se disser, seus filhos, sua família, seu trabalho, seus amigos, seus bens, sua conta bancária, qualquer um desses pode ser apenas o nome da bola de ferro presa ao seu pé. Não que eles não sejam importantes, mas não podem jamais tomar o lugar de Deus como amor maior em nossos corações. A pandemia tem exposto e nos trazido anseios, medos e temores do que nosso amor maior pode sofrer, mas o que resta destes sentimentos quando nosso amor maior está acima de tudo e não pode ser atingido?

Que tal o exercício de começar a crer de fato em Deus?

O Cristianismo é a única religião que afirma que Deus abriu mão da sua liberdade a fim de que pudéssemos experimentar a liberdade em sua plenitude. Livres do mal e da morte, por confiar em um Deus que sacrificou o seu próprio filho para que por ele pudéssemos ser livres das amarras terrenas que se limitam ao Coronavírus e se quer resistem ao tempo.

Foi Jesus quem disse "vinde a mim, todos vos que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, pois sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para a vossa alma. Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve" Mateus 11.28-30

Parafraseando, ele diz, cara, vem fazer apenas as coisas que criei para fazer, por isso meu jugo é suave. Tu terá o fardo de mim seguir, mas saiba que eu já paguei o preço por isso, e quando tu falhares, já tensões o meu perdão. Tirei de ti o fardo que outras pessoas te colocaram e o fardo de ter que fazer por merecer a salvação por teu próprio esforço. Te liga, o fardo das culpas por erros e fracassos do passado foram removidos da tua vida. Não precisa mais se provar digno de amor, esse fardo está comigo e não mais contigo. Então agora eu sou teu único Senhor e mestre, e apenas eu poderei te plenamente satisfazermente. Se tu falhares, calma, eu poderei perdoá-lo meu filho.

Entendendo isso, sabemos que nossa limitação é suprema e infinitamente libertadora, pois já não há mais o que pode abalar nossa confiança e alegria, pois somos verdadeiramente livres em Cristo. Isso significa que nosso amor não tem finalidade terrena e, portanto, não está limitado às dificuldades da vida, seja vírus ou quaisquer outras circunstâncias.

Por nosso amor maior estar em Deus é que podemos relacionar com todas as coisas mais demais dando a elas o seu valor, seja a família como família, seja o trabalho, como trabalho, amigos como amigos e assim por diante.

Aqui cabe mais um trecho de Tim Keller em seu livro Deus na era secular: "Agostinho (de Hipona) não via nossos problemas como algo que se originava apenas da falta de amor. Também observou que as afeições do coração tem sua devida ordem, e que com frequência amamos mais as coisas menos importantes e vice-versa. Portanto, a infelicidade e a desordem em nossa vida são causadas pela desordem de nossas afeições. Alguém justo e bom "é também alguém que tem sua afeição ordenada [de forma correta], de modo que não ama o que é errado amar e nem deixa de amar o que deve ser amado bem ama demais o que deve ser menos amado (nem ama pouco o que deve ser mais amado)". Como isso funciona? Não há nada errado em amar seu trabalho, mas se você amar mais do que sua família, então suas afeições estão desordenadas e você pode arruinar a família própria. Ou se amar ganhar dinheiro mais do que ama a justiça, então explorará seus empregados, novamente porque suas afeições estão desordenadas.

Que Deus possa abençoar você em tempos de angústia e seu coração pode se encher de esperança.

"Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres" (Jo 8.36)

Augusto Marques

Em um reflexo sobre o capítulo Cinco do livro de Timothy Keller — Deus na Era Secular: Como céticos podem encontrar sentido no Cristianismo.


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